Dicionário da Laudato Si´

de Paulo Suess – 16/04/2017

A “sobriedade feliz” (224s), que resume a proposta da Encíclica Laudato si’, contrasta com a “alegre irresponsabilidade” (59) e “superficialidade” (229) que, juntas, procuram esconder a crise socioecológica em que vivemos, e que caracterizam os cenários reais da questão socioecológica. A ação desordenada do ser humano ameaça o futuro das suas próprias condições de vida. Setores da classe política e empresarial, até hoje vencedores, procuram prolongar o projeto de um desenvolvimento agonizante e terceirizam seus custos aos pobres e à natureza.

Mas a natureza é uma aliada fiel aos pobres, dos quais faz parte, porque se encontra, segundo a LS, “entre os pobres mais abandonados e maltratados” (2). Antes de os pobres conseguirem articular uma “greve geral”, a natureza sinalizou seus protestos através da crise do meio ambiente, amplamente descrita na LS. A capilaridade dessa crise se mostra em todos os recantos de vida deste planeta. As preocupações “pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (10) são inseparáveis. Não há duas crises, “uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza”

Estrutura e fio condutor

Louvado sejas (LS), com suas análises, advertências, convites e propostas, se dirige ao mundo inteiro. Para isso, faz uso da metodologia indutiva e latino-americana do ver- -julgar-agir, denuncia uma concepção idolátrica e mágica do mercado (cf. LS 190, 56) e protesta contra uma economia que exclui os mais pobres (cf. LS 95). O que está em jogo não são algumas questões ecológicas, mas a responsabilidade de toda a humanidade pela terra que é nossa casa comum. O clima e a atmosfera são “um bem comum, um bem de todos e para todos” (23). O bem viver e o horizonte “para todos” exigem a construção de um mundo sem privilégios e sem privilegiados. A estrutura e o fio condutor da Encíclica, que se insere no magistério social da Igreja, são bem transparentes. O próprio autor do texto indica (LS 15): “Em primeiro lugar, farei uma breve resenha dos vários aspectos da atual crise ecológica, com o objetivo de assumir os melhores frutos da pesquisa científica atualmente disponível, deixar-se tocar por ela em profundidade e dar uma base concreta ao percurso ético e espiritual seguido” (Capítulo I, 17-61).

“A partir desta panorâmica, retomarei algumas argumentações que derivam da tradição judaico-cristã, a fim de dar maior coerência ao nosso compromisso com o meio ambiente” (Capítulo II, 62-100).

“Depois procurarei chegar às raízes da situação atual, de modo a individuar não apenas os seus sintomas, mas também as causas mais profundas” (Capítulo III, 101-136).

“Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia” (Capítulo IV, 137-162).

“À luz desta reflexão, quereria dar mais um passo, verificando algumas das grandes linhas de diálogo e de ação que envolvem seja cada um de nós seja a política internacional” (Capítulo V, 163-201).

“Finalmente, convencido – como estou – de que toda a mudança tem necessidade de motivações e de um caminho educativo, proporei algumas linhas de maturação humana inspiradas no tesouro da experiência espiritual cristã” (Capítulo VI, 202-246).

Em seguida, o papa indica os eixos dessa reflexão, que permeiam toda a encíclica: “a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta, a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo, a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da tecnologia, o convite a procurar outras maneiras de entender a economia e o progresso, o valor próprio de cada criatura, o sentido humano da ecologia, a necessidade de debates sinceros e honestos, a grave responsabilidade da política internacional e local, a cultura do descarte e a proposta de um novo estilo de vida” (16). Esses temas, como acontece também com os verbetes deste dicionário, “nunca se dão por encerrados […], mas são constantemente retomados” (ibid.) e iluminados por novos enfoques. Ninguém se preocupe se alguns trechos da Encíclica são citados mais de uma vez, para sublinhar determinado pensamento sob outro ângulo. As ricas citações da Encíclica indicam apenas que o autor não queria substituir a palavra do papa, mas ordená-la em torno de demandas práticas que aparecem na vida cotidiana de uma paróquia ou comunidade (catequese, aulas, homilias, palestras). As múltiplas fontes das citações, no interior da LS, o leitor encontra no próprio texto da Encíclica.

Teologia da criação

A teologia subjacente à reflexão teológica da questão ecossocial é a Teologia da Criação. Tudo que existe fora de Deus foi criado por Ele. Segundo o “Evangelho da Criação”, o Deus uno e trino é origem e finalidade da criação e da história de salvação. Criação e redenção, como obras da Trindade, são obras do amor (cf. LS 238-240, cf. GS 19a). A finalidade da criação é a revelação da glória de Deus. Através do trabalho e da criatividade cultural, a humanidade continua a obra da criação com certa liberdade que exige responsabilidade. Jesus Cristo corrige a lei “natural” da sobrevivência do mais forte, que era necessária até o aparecimento do ser humano. Consciência, liberdade e língua, que constituem a dignidade particular da humanidade, são capazes de superar a programação dos instintos.

Por meio do Antigo Testamento, Deus preparou Israel para romper com a lei do mais forte através da missão de seu Enviado, Jesus Cristo. Este defendeu o conjunto da humanidade a partir dos pequenos, dos mais fracos, dos pobres e das minorias étnicas ameaçadas (cf. Lc 4,18; 6,20; 19,10; Mt 12,20; 25,40). A partir da nossa fé compreendemos a substituição da lei do mais forte pela boa convivência de todos — com Deus, a humanidade e a natureza — como “Nova Criação” (2Cor 5,17; Gl 6,15). No “bem viver” de todos se realiza a “Nova Criação”.

As ciências humanas ensinaram a teologia a compreender cada vez mais o fundo metafórico das narrativas bíblicas. Com Darwin (1809-1882), por exemplo, a teologia aprendeu a irmandade entre ser humano e natureza; aprendeu a incluir com mais realismo a humanidade na evolução da criação e da natureza. De um modo especial, a humanidade faz parte da evolução da natureza, que é sua irmã maior (em idade): “A terra existe antes de nós e foi-nos dada” (LS 67). “Estamos incluídos nela (na natureza), somos parte dela e compenetramo- nos” (LS 139). Essa proximidade entre natureza e ser humano desautoriza o dualismo de um corte rígido entre natureza e cultura. O reconhecimento da natureza não só como objeto, mas como sujeito e aliado, nos obriga a repensar o tratamento da terra, da água e do ar a partir de sua dignidade como obra de Deus. Nos obriga sobretudo a desconstruir a divisão cartesiana entre “res cogitans” e “res extensa”, que está no início da modernidade.

Por fazer parte da natureza temos com ela uma missão ética de responsabilidade e de solidariedade recíproca com tudo o que foi criado (cf. LS 92). Partilhamos com a natureza nascimento e finitude (morte). Temos um DNA, que nos condiciona, independente de nós, como pessoa. A herança genética está inscrita em nossa vida, mas temos também dispositivos de responsabilidade que nos fazem ir além da obrigatoriedade dos instintos e das programações genéticas.

Sobriedade feliz

A bandeira da “sobriedade feliz” parece uma proposta tímida para quem cresceu com “uma reduzida autoconsciência dos próprios limites” (105) e dos limites do crescimento da natureza. A qualidade de vida parece sempre exigir um mais quantitativo e veloz crescimento, como numa corrida da Fórmula 1. Cada recorde das safras agrícolas é festejado como um novo recorde olímpico, sem olhar para a natureza agonizante.

Mas “a espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (222). Nossa mística nos promete plenitude de vida através do despojamento. A LS afirma que a sobriedade nos faz crescer na alegria com pouco. É “um regresso à simplicidade que nos permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos por aquilo que não possuímos” (222). Não se trata simplesmente de “um ascetismo exterior” (11). A pobreza e a austeridade de São Francisco eram “algo de mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio” (11).

A mística da sobriedade é um complemento operacional dos dons e dos pães que nós recebemos para viver a nossa vida na partilha com os outros. A sobriedade produz abundância, não penúria. A partilha multiplica os pães. A complementariedade, o intercâmbio e a partilha nos ensinam a “falar a língua da fraternidade e da beleza na nossa relação com o mundo” (11). A sobriedade é libertadora (cf. 223), porque restabelece a dignidade da “nossa relação com o mundo” (126); diminui as próprias necessidades (cf. 193) e nos liberta dos excessos de coisas e palavras, de contingências e supostas verdades (cf. 223).

A “sobriedade feliz” emerge do contexto da “conversão ecológica”. Os passos educativos dessa conversão apontam para a passagem “da avidez à generosidade, do desperdício à capacidade da partilha numa ascese que significa aprender a dar, e não simplesmente renunciar” (LS 9). O desapego é central para a construção de uma vida inteira, livre, integral. O desapego como ascese, como exercício de se livrar do desnecessário para que todos possam usufruir o necessário, ultrapassa a esfera do privado e do individual. O desapego como exercício ascético tem uma função social que desestabiliza o sistema. Desapegar ou desprender-se de algo não significa, simplesmente, abrir mão de algo; significa deixar algo ser, deixar algo livremente existir – algo que estava ameaçado pelos apegos a desejos e objetos. O desprendimento não é privação, mas libertação e purificação. Dessa purificação, caracterizada pela recusa a práticas possessivas de acumulação e adaptação, emergem energias novas. Como livramos animais e árvores de parasitas, que lhes roubam a energia vital, assim nós também temos necessidade de nos livrarmos de apegos parasitários que nos roubam a energia. Sem liberdade e energia, a vida começa a murchar. O desprendimento em sua forma individual pode ser compreendido como conversão e ascese, em sua forma comunitária ou sociopolítica, como ruptura e solidariedade.

A “sobriedade feliz” rompe com a lógica alienante do senso comum que, muitas vezes, é a perversão do bom senso e da possibilidade do “bem viver”. Lutamos por novas relações de produção e outros padrões de consumo que correspondam ao projeto da criação. Lutamos por uma relação fraterna com a natureza, nossa irmã, e pelo reconhecimento da alteridade do outro que está entre nós.

A “sobriedade feliz” não pode ser cobrada nos tribunais de justiça. Ela está inscrita no horizonte de gratuidade que ultrapassa a justiça humana da reciprocidade. Cada gesto simbólico ou real de gratuidade rompe com a lógica de custo- -benefício. Cada transformação de relações de competição em relações de reciprocidade pode ser a raiz de uma nova pessoa e de uma outra sociedade.

A “sobriedade feliz” nos envolve num processo de amadurecimento de paz interior e exterior (cf. 225). O regresso à simplicidade nos preserva de ser objeto de desejos materiais de outros. Estes desejos estão geralmente no início de cobiças que desembocam em guerras e inimizades. Também “a paz interior das pessoas tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque, autenticamente vivida, se reflete num equilibrado estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida” (225).

Revolução cultural

Escrevi este caleidoscópio bergogliano de 50 palavras- -chave da LS com certa urgência apaixonada e solidariedade crítica por causa do tempo que resta e urge, lutando contra o esquecimento e a resistência daqueles que querem que tudo continue como sempre foi. A leitura deste Dicionário exige certa disciplina. Um verbete por dia seria um bom começo. Pela experiência sabemos que as Encíclicas correm o risco de receber “menções honrosas” e de desaparecer da consciência eclesial, antes de serem aprofundadas e assumidas no dia a dia dos nossos ambientes profissionais, das nossas comunidades, paróquias e dioceses. “Nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos. […] O problema é que não dispomos ainda da cultura necessária para enfrentar esta crise” (53).

É verdade que realizamos a Campanha da Fraternidade 2017 sobre “Biomas brasileiros e defesa da Vida” ao lado de outras CF que trataram a questão da ecologia: Fraternidade e Terra (1986), Água (2004), Amazônia (2007), Vida no Planeta (2011), Casa comum, nossa responsabilidade (2016). Tiveram algum resultado concreto?

Como todos os anos acontece, também em 2016, 40 dioceses simplesmente deixaram de enviar sua contribuição ao Fundo Nacional de Solidariedade, referente aos 40% da coleta feita no Domingo de Ramos. Será que os aproximadamente 15% das dioceses do Brasil, com seu óbolo ecológico retido na fonte, cuidaram melhor da “casa comum” e entenderam o espírito da Laudato si’?

A solidariedade crítica para com o Papa Francisco há de levar em conta que ele, ex officio, é pontifex, construtor de pontes, e não um produtor de rachaduras. Uma vida, que chegou ao outono, é demasiado curta para se livrar totalmente dos próprios condicionamentos culturais e da submissão institucional a decisões caducadas dos antecessores. Eis a questão que deve atormentar uma discípula e um discípulo de Jesus: Onde cabe o açoite para expulsar os vendedores do templo e onde cabem os afagos da misericórdia, que espera a volta do filho na porta de casa?

Para avaliar os passos dados por Francisco precisamos comparar dois cenários. Na Conquista e primeira colonização, entre sistema colonial e atividade missionária, se estabeleceu uma cooperação recíproca e conivência morna. Na segunda onda colonial de hoje, chamada globalização, um papa que veio dos confins do mundo introduz na Igreja Católica uma nova epistemologia e uma hermenêutica latino-americana que procuram romper o cerco colonial vitalício, portanto, persistente. Não existe um ponto zero de colonização ou uma ilha, sem alienados e sem alienação, fora dela. Quem não queria ir embora pra Pasárgada, onde é amigo do Rei?

Se na primeira colonização a Igreja estava ao lado dos colonizadores, nessa segunda colonização universal, não só do meio ambiente, mas das culturas, de sua diversidade pela monocultura global, a Igreja de Francisco está ao lado dos colonizados que resistem contra sua condição colonial. Em nome do Evangelho, está rompendo fronteiras milenares. Na contramão da cultura hegemônica, reivindica uma “corajosa revolução cultural” (114) e puxa o freio de emergência de um bonde chamado progresso. Isso faz toda diferença.

Mas em matéria de descolonização, nem todos os passos possíveis foram dados. Para dar um exemplo “suave”, eu pergunto: Por que a Igreja do Brasil recebe os textos da Cúria Romana na língua de seu colonizador, no português de Portugal, e não numa tradução ao português do Brasil? Os outrora colonizados sempre encontrarão na fala do colonizador razões para piadas e mal-entendidos. Seria um sinal importante e o reconhecimento de uma epistemologia do Sul.

Contudo, com Francisco, a Igreja latino-americana faz parte de um pacto anticolonial em defesa da casa destelhada e de muros rachados. Os habitantes da casa ocupam espaços desiguais. Uns têm cubículos, outros habitam mansões, uns têm um “simplex” na rua e outros um “duplex” na orla marítima. Os pobres, que vivem no “simplex da rua”, são os primeiros que a precariedade da casa prejudica. Também os ricos não escapariam de um tsunami capaz de derrubar sua casa na praia. Mas eles ainda têm uma segunda casa terra adentro.

Não apagueis o Espírito!

O Papa Francisco assinou a Laudato si’ na festa de Pentecostes, no dia 24 de maio de 2015. No Capítulo das Esteiras, a família franciscana, ainda hoje, celebra na “sobriedade feliz” os laços fraternos (uma espécie de sinodalidade caseira), a diversidade e gratuidade dos dons e línguas, a opção pelos pobres e pelos outros, e o envio em missão. Esse Capítulo, anualmente celebrado na festa de Pentecostes, é um ensaio da “Igreja em saída”. O Papa Francisco fez da Laudato si’ um Capítulo das Esteiras para toda a humanidade. Convocou a todos a renovar seu compromisso com o “cuidado da casa comum” e com a solidariedade de seus habitantes esquecidos na margem, onde se ouve o clamor do povo por causa da “grande aflição” (Ap 7,14). Assim chegamos à razão profunda da Laudato si’: “A condição de toda verdade é a necessidade de dar voz ao sofrimento” (Adorno).

Pe. Paulo Suess
Páscoa do Senhor, 16 de abril de 2017

SUESS, Paulo. Dicionário da Laudato si´. Sobriedade Feliz. São Paulo: Paulus, 2017. 189 p.