Missão e misericórdia

de Paulo Suess – 08/07/2017

O primeiro capítulo da Exortação apostólica Evangelii gaudium sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (EG, 2013) é como se fosse o fundo musical de uma sinfonia intitulada “A alegria do Evangelho”. Mas como a gente nasce gritando e a canção é uma conquista posterior, assim também a alegria do Evangelho é uma conquista, um aprendizado, em meio a gritos, sofrimentos e tristezas. A alegria do Evangelho não faz da dor um rodapé da vida, mas atravessa a dor e a cruz na esperança da ressurreição.

Num mundo de aceleração dos processos de produção e reflexão, em que não somente os produtos de mercado, mas também os paradigmas de pensamento são rapidamente descartados, o “intervalo criativo” que a EG nos impõe pode ser compreendido como revisão de vida ou reparo emergencial, comparável aos pit stops, intervalos que os pilotos da Fórmula 1 são obrigados a fazer em suas corridas. Esses pequenos intervalos servem para trocar pneus, retirar fuligem das entradas de ar e reabastecer o tanque com combustível. A EG pode-se considerar um desses pit stops da Igreja universal na corrida cinquentenária pós-conciliar, um realinhamento e reabastecimento da caminhada entre a raiz do Evangelho, a caminhada desde o Vaticano II e o horizonte da EG.

Comparar a Evangelii gaudium com um pit stop na corrida de Fórmula 1 também é procedente, porque não estamos sozinhos na pista – o próprio capitalismo é um desses pilotos disputando na mesma pista, onde se oferece como “bem-estar” uma medalha de ouro para 1% dos vencedores da humanidade, enquanto mais da metade dos seres humanos é consolada com medalhas de latão, sonhando para os bisnetos a medalha do “bem viver”. Correm conosco também o movimento ecumênico e setores com outras leituras do Evangelho. Às vezes, as fronteiras entre zelo autêntico pela transmissão da fé e patologias proselitistas são difusas. Competem nesta pista ainda, com uma torcida crescente, não somente seitas fundamentalistas, mas o mundo secularizado e a própria modernidade ocidental, com suas exigências e promessas de historicidade, subjetividade, autonomia e racionalidade – promessas, ao mesmo tempo, cumpridas e traídas.

Também nos encontramos numa situação concorrencial de mercado religioso, em que devemos distinguir entre dois programas opostos: o da inculturação, ou inserção no mundo, e o da alienação cultural, que assume valores capazes de destruir a proposta do Evangelho. Essa alienação cultural não dispensa os esforços da encarnação. Jesus não se encarnou num mundo perfeito, pelo contrário, tornou-se vítima de um mundo imperfeito. A missão se encarna nas limitações humanas (cf. EG 40-45). Diante do mundo e de sua realidade sociocultural, tomando como ponto de partida o método indutivo, devemos aprender a transformar situações de concorrência em situações de cooperação. A encarnação tem essa finalidade. “Jesus de Nazaré encarnou- se por causa da nossa salvação.” Encarnação, inserção ou inculturação precedem à libertação salvífica, Natal precede à Páscoa.

As paradas para corrigir erros ou trocar pneus gastos podem ser chamadas de inícios de “conversão” e de “reforma permanente” (EG 26; UR 6). Trata-se de uma conversão das pessoas e das estruturas: “Há estruturas eclesiais que podem chegar a condicionar (frear) um dinamismo evangelizador” (EG 26), escreve o papa. Estruturas podem corromper a mensagem, frear a caminhada e impossibilitar a transformação almejada. Na EG, Francisco retoma a esperança do Papa João XXIII, que convocou o Concílio Ecumênico para “restituir ao rosto da Igreja de Cristo o esplendor dos traços mais simples e mais puros de suas origens”. (Mensagem da CNBB sobre a celebração do 50o aniversário do Concílio Ecumênico Vaticano II – 26.04.2012).

O título deste livro nos encaminha, com três palavras fortes – “missão”, “transformação”, “misericórdia” –, para a leitura da Evangelii gaudium (2013), que trata da “alegria do Evangelho” no anúncio de uma Boa-Nova ao mundo atual. “Missão” e “misericórdia” exigem a “transformação” de uma Igreja institucionalmente sedentária, às vezes, prisioneira de uma “tradição desfigurada“ e enrijecida no decorrer de sua história. “Ganhamos plenitude quando derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes” (EG 274).

Para o autor da Evangelii gaudium (EG), essa não era uma tarefa fácil. Para seus leitores, será uma leitura cheia de surpresas e estímulos para sua vida pessoal e o futuro da Igreja, desde que eles não confundam a transformação missionária da Igreja por meio da demolição de paredes de séculos passados com os questionamentos de sua autorreferencialidade em tempos atuais.

Ao assumir seu pontificado, o Papa Francisco percebe que o corpo eclesial precisa de uma transformação curativa de sintomas eclesiais de depressão e autorreferencialidade. A receita experimentada na periferia de Buenos Aires, Francisco propõe agora para a Igreja universal, tendo os seguintes imperativos como categóricos:

  • “Não deixemos que roubem nosso entusiasmo missionário” (EG 80).
  • “Não deixemos que nos roubem a esperança” (EG 86).
  • “Não deixemos que nos roubem o Evangelho” (EG 97).
  • “Não deixemos que nos roubem a força missionária” (EG 109).

Quem são esses ladrões que roubam o entusiasmo, a esperança e o próprio Evangelho? O abismo entre pobres e ricos, a depressão e a autorreferencialidade com seus anexos de autoritarismo, fundamentalismo e consumismo. O remédio proposto pelo papa, para todos esses males, é o reavivamento da “natureza missionária” do povo de Deus. Ele é o antídoto contra o esquecimento da “natureza missionária” e o sufocamento da “alegria do Evangelho” entre os batizados. No encontro com a Comissão de Coordenação do Celam, durante a Jornada Mundial da Juventude, em 28 de julho de 2013, no Rio de Janeiro, Francisco explica as dimensões da missão, segundo o evento de Aparecida: Aparecida, disse Francisco, “prolonga-se na Missão Continental”, que tem duas dimensões: a programática e a paradigmática. A primeira se refere a “atos de índole missionária”. A segunda, a missão paradigmática, por sua vez, implica colocar em chave missionária a atividade habitual das Igrejas particulares. Em consequência disso, evidentemente, verifica-se toda uma dinâmica de reforma das estruturas eclesiais. A

“mudança de estruturas” (de caducas a novas) não é fruto de um estudo de organização do organograma funcional eclesiástico, de que resultaria uma reorganização estática, mas é consequência da dinâmica da missão (Palavras do Papa Francisco no Brasil. São Paulo, Paulinas, 2013, p. 133s.)

Nos 50 anos pós-conciliares, essa “natureza missionária” não foi esquecida. Estava presente em simpósios e conferências, em faculdades de Teologia e em dioceses, em congregações missionárias e nas Obras Pontifícias (POM), mas o vínculo entre batismo e missão não alcançou ressonância significativa no povo de Deus, algo que é necessário para transformar a Igreja e o mundo. O Papa Francisco assume a “natureza missionária” do povo de Deus como pilar de sustentação de seu projeto pastoral e eclesiológico. A Evangelii gaudium (EG) representa um “intervalo criativo” para reabastecer a reflexão e a prática missionárias do povo de Deus.

SUESS, Paulo. Missão e misericórdia. A transformação missionária da Igreja segundo a Evangelii Gaudium. São Paulo: Paulinas. 2017. 101 p.