Procurando entender o Papa Bento XVI

Para se acercar de quem foi o Papa Bento XVI pode-se tomar como chave de interpretação a sua virada diante da crise do ano de 1968. Este ano foi marcado por eventos muito fortes que abalaram o mundo todo. A revolta contra a guerra do Vietnã, o movimento de massa chamado de a Primavera de Praga, na então Tchecoslováquia, o assassinato de Martin Luther King e a ocupação da Universidade de Sorbonne, na França, são alguns deles.

O reflexo disso tudo no interior da Igreja não tardou a acontecer. Apenas três anos nos separavam do término do maior evento eclesial do século XX: o Concílio Vaticano II. Nesse contexto, temos a publicação de algumas reflexões do teólogo Joseph Ratzinger sobre o futuro da Igreja. Importante destacar que a crise eclesial não estava diretamente ligada ao Concílio, mas para muitos de dentro da Igreja, a crise tinha se agravado com ele. No seu livro Fé e futuro, o teólogo Ratzinger faz um paralelo entre a crise eclesial dos anos finais da década de sessenta com a vivida na segunda metade do século XVIII, com o advento do racionalismo. O chamado ‘Século das Luzes’ não poupou a Instituição Católica de suas críticas acerbas.

O teólogo Ratzinger que, até então, se mostrava aberto às transformações nas relações entre Igreja e mundo, tão presente nos textos do Concílio, parece ter se deixado impregnar pelo medo do espírito revolucionário presente em tantos eventos contestatórios mundiais. Ele vislumbrava um futuro muito sombrio para a Igreja, um esvaziamento incomensurável, este sim, sem paralelo histórico.

Ainda em 1965, ano do encerramento do Concílio Vaticano II, vários teólogos que tinham assessorado os trabalhos conciliares, consideraram que o Concílio exigia um trabalho permanente de reforma da Igreja, para manter o seu espírito vivo. Nessa perspectiva, criaram uma revista internacional de teologia chamada Concilium, e dentre seus colaboradores estava o Joseph Ratzinger. Porém, poucos anos depois, ele se distanciava do pensamento desse grupo de teólogos e se alinhava a outros pensadores com olhares mais conservadores, que criaram outra revista denominada de Communio. Desde 1969, Ratzinger fazia parte da Comissão Teológica Internacional, criada por Paulo VI, acolhendo uma proposta do primeiro Sínodo dos Bispos pós-conciliar.   

Embora a revista Communio tenha vindo à lume em 1974, desde os anos 70 estava lançada sua base pelo grande teólogo Hans Urs von Balthasar, o qual atraiu um grupo significativo de teólogos para fazer frente ao grupo da Concilium.

O que vemos, a partir daí, é o desenvolvimento de um outro teólogo Ratzinger, menos otimista em relação ao futuro da Igreja no mundo, e muito crítico a qualquer avanço eclesial, quer no âmbito do pensamento teológico, quer na esfera da prática eclesial.

Quando o Papa João Paulo II assumiu o pontificado, em 1978, logo foi buscar quem pudesse defender a doutrina da Igreja, contra os pensadores mais abertos, sobretudo, os adeptos da Teologia da Libertação. Nesta perspectiva, em 1981, assumiu como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé o cardeal Joseph Ratzinger. Este cargo e sua atuação lhe renderam o apelido de “rottweiler de Deus”. 

E logo no ano de 1984, às vésperas do Sínodo Extraordinário dos Bispos, convocado pelo Papa João Paulo II, comemorativo aos 20 anos de encerramento do Concílio Vaticano II, o cardeal Ratzinger cedeu uma entrevista ao jornalista Vittorio Messori, que considero emblemática para compreensão do programa de restauração eclesial, empreendido pelo Papa João Paulo II com a assessoria teológica do cardeal Ratzinger. Vou destacar os principais pontos dessa entrevista e outros que nos ajudam a entender mais profundamente o pensamento e a atuação do cardeal alemão, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1981 a 2005, quando assumiu o papado como Bento XVI.

Teologia da Libertação

Disse Bento XVI: “trata-se, na realidade, ao menos na sua origem, de uma criação de intelectuais, e de intelectuais nascidos ou formados no Ocidente opulento: europeus são os teólogos que a iniciaram, europeus, ou educados em universidades europeias, são os teólogos que a fazem crescer na América do Sul. Por detrás do espanhol e do português dessa pregação se entrevê, na realidade, o alemão, o francês, o anglo-americano” (RP. p. 199).

Com esse (pre)conceito, nunca chegou a entender a genuína Teologia da Libertação. Não é pelo fato de serem teólogos formados na Europa que não possam, em contado com a realidade nativa, produzir pensamento próprio. O método indutivo, popularmente conhecido como ver-julgar-atuar, permitiu aos teólogos da libertação colocarem à prova suas teorias aprendidas nas universidades europeias e reformular sua teologia à luz da realidade dos seus países de origem.

Conferências Episcopais

Segundo Bento XVI “não devemos esquecer que as conferências episcopais não possuem base teológica, não fazem parte da estrutura indispensável da Igreja assim como foi querida por Cristo; possuem apenas uma função prática, concreta” (RF. p. 60). “Em muitas conferências episcopais, o espírito de grupo, talvez a vontade de viver em paz, e até o conformismo arrastam as maiorias a aceitar as posições de minorias ativas, determinadas a andar numa direção precisa” (RF. pp. 62-63).  

Nessa perspectiva, desconsiderou a colegialidade presente na Constituição Dogmática Lumen gentium e inspirou o Papa João Paulo II a escrever um Motu Proprio – Apostolos suos –, totalmente desfavorável às Conferências Episcopais.

Nomeação de Bispos

“Nos primeiros anos do pós-Concílio, o candidato ao episcopado parecia ser um sacerdote que fosse, antes de tudo, aberto ao mundo; em todo o caso, este requisito era posto em primeiro plano. Depois da virada de 1968 e em seguida, lentamente, com o agravar-se da crise, compreendeu-se que aquela característica única não era suficiente. Percebeu-se que, também através de amargas experiências, se faziam necessários bispos abertos, mas, ao mesmo tempo, dispostos a opor-se ao mundo e a suas tendências negativas” (RF. p. 65).

Desta forma, deu-se inicio a uma série de nomeações de bispos alinhados com o projeto de “restauração”, eufemisticamente chamado de “Nova Evangelização”. A Igreja empreendeu um toque de recolher, refugiando-se no interior da Instituição, o que fez desencadear também uma série imensa de conflitos internos, sobretudo, na busca de poder.

Aposta nos movimentos

“O que se abre à esperança, em nível de Igreja universal – e isso acontece no coração da crise da Igreja no mundo ocidental – é o surgimento de novos movimentos, que ninguém projetou, mas que brotaram espontaneamente da vitalidade interior da própria fé. Neles se manifesta algo como uma estação de Pentecostes na Igreja. Refiro-me ao Movimento Carismático, aos Cursilhos, ao Movimento dos Focolari, às Comunidades Neocatecumenais, à Comunione e Liberazione etc. Certamente estes movimentos levantam algum problema; comportam também, em maior ou menor medida, perigos. Mas isto acontece em qualquer realidade vital” (RF. pp. 41-42).

Durante os pontificados de João Paulo II e Bento XVI, as congregações religiosas passaram por momentos muito difíceis, sob intervenção, várias delas, sobretudo as femininas. Os movimentos, no geral, desembocaram por uma via fundamentalista, com forte atuação no mundo político de direita, embora negassem que estivessem fazendo política.

Sobre a natureza da Igreja

“Para os católicos, a Igreja é composta de homens que lhe organizam o rosto externo; mas, atrás dele, as estruturas fundamentais são queridas por Deus mesmo, e por isso são intocáveis. Atrás de face humana está o mistério de uma realidade sobre-humana, sobre a qual o reformador, o sociólogo, o organizador não possuem nenhuma autoridade para intervir” (RF. p.46).

Com esta eclesiologia, a instituição católica se fecha e não permite colaboração alguma de um dos seus seguimentos mais significativos, o laical. Transforma-se naquilo que o Papa Francisco vem denominando Igreja-museu, com muito passado e pouco futuro.

Igreja-Povo de Deus

“Por detrás do conceito, hoje, tão enfatizado, da Igreja como unicamente Povo de Deus estão sugestões de eclesiologias que, de fato, retornam ao Antigo Testamento; e até, talvez, a sugestões políticas, partidárias, coletivistas. A Igreja de Cristo não é um partido, não é uma associação, não é um clube; a sua estrutura profunda e ineliminável não é democrática, mas sacramental, portanto hierárquica” (RF. pp. 47-49).

Reduzindo a eclesiologia de Povo de Deus a mero conceito sociológico, esvazia a melhor eclesiologia do Concílio Vaticano II que incentiva uma Igreja de comunhão sim, e com ampla participação de todos os batizados, aos quais o batismo confere o sacerdócio universal. Percebe-se que com base nessa crítica da Igreja Povo de Deus que hoje muitos se opõem ao caminho sinodal proposto pelo Papa Francisco.

Enfim, considerando que a Igreja estava às vésperas de um Sínodo onde se pretendia comemorar os 20 anos de encerramento do Concílio Vaticano II, as palavras do Cardeal Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, tinham muito peso. Tal Sínodo realmente foi realizado num clima de medo da parte de muitos bispos, que temiam uma decisão oficial de retrocesso. Ratzinger dizia com todas as letras: “é incontestável que os últimos vinte anos foram nitidamente desfavoráveis para a Igreja católica. Os resultados que se seguiram ao Concílio parecem cruelmente opostos às expectativas de todos, a começar pelas do papa João XXIII, e, depois, as de Paulo VI” (RF. p. 27). Por isso, definia o processo de restauração da Igreja como o de busca de um novo equilíbrio, dando por encerrada a primeira fase do Vaticano II (cf. RF. p.36).

*    *    *

Depois de uma avalanche de escândalos no interior da Instituição Católica no campo financeiro e, sobretudo no campo da moral sexual, com inúmeras denúncias de casos de pedofilia, envolvendo clérigos do mundo inteiro, o Papa Bento XVI renunciou, reconhecendo que não reunia mais forças de mente e de corpo para tocar a barca de Pedro. Podemos dizer que com sua renúncia se dava por encerrado o projeto de restauração empreendido pelos pontificados de João Paulo II e Bento XVI.

 

FONTES

1. Vaticano II y la Iglesia Latinoamericana. En Páginas, Separata n. 70, agosto de 1985. Esta separata foi editada pelas Edições Paulinas, em 1985, sob a coordenação do José Oscar Beozzo.

2. RF. é abreviatura para Rapporto sulla fede. Os textos foram traduzidos da edição italiana.

 

Fonte: Amerindia