Impulsos e intervenções

de Paulo Suess – 01/10/2011

Estes Impulsos e intervenções apontam para a “atua­lidade da missão” e para a necessidade da formação permanente dos missionários e das missionárias. Origi­nalmente, os textos deste livro foram apresentados nas reuniões da Equipe Executiva do Conselho Missionário Nacional (Comina), alguns também em Encontros Na­cionais de Organismos e Instituições Missionários (Enoim) ou em encontros do Comina com coordena­dores de Conselhos Missionários Regionais (Comires). Por definição de seu regulamento, o Comina é um órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que promove o diálogo e a cooperação de todas as insti­tuições missionárias atuantes no país. Participei desses encontros como delegado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Em suas reuniões periódicas, a equipe executiva do Comina quis não só tratar de assuntos pragmáticos, administrativos e organizativos da atividade missionária, mas fez questão de contextualizar e aprofundar temas missiológicos relevantes, desafios herdados e questões novas e disputadas. Agora, a equipe executiva pediu a publicação dessas reflexões, cuja responsabilidade é de ordem pessoal.

Na esteira do Vaticano II, o Documento de Apa­recida nos lembra a natureza missionária da Igreja (cf. DAp 347), enraizada no mistério trinitário e no sacramento do batismo do povo de Deus. A Igreja do Brasil tem experiências missionárias autênticas não só em Timor Leste, em Moçambique, em Haiti e em tantos outros países, que o Comina acompanhou de perto, mas também no interior do país, nas pastorais específicas, em algumas dioceses, paróquias e comunidades religio­sas. Mas ainda estamos longe de operacionalizar essa natureza missionária como algo óbvio. Ainda estamos longe de ver na missão não apenas uma “tarefa opcio­nal”, mas de assumi-la como “parte integrante da iden­tidade cristã” (DAp 144), para que o Cristo em e entre nós se torne esperança da glória para todos! (cf. Cl 1,27).

Como cumprir essa missão de anunciar a esperan­ça no mundo em que desigualdade e miséria globalizadas são produtos da “civilização do mercado”, das transações financeiras e da apropriação desigual dos bens do pla­neta Terra por setores privilegiados? Qual é a força do Evangelho naquela parcela da humanidade que vive em redutos de miséria e luta por padrões elementares de justiça? Compreendemos a tarefa da missão como cons­trução de um mundo radicalmente novo ou como re­mendo novo em roupa velha?

Tudo isso desafia a prática missionária, a reflexão missiológica e a missão como projeto que anuncia, a partir da filiação divina, igualdade e irmandade de todos os seres humanos e, a partir da ressurreição e do Juízo Final, justiça definitiva e universal. Igualdade e justiça que emanam, como metas, da filiação divina e da res­surreição dos mortos não são apenas pontos de partida e de chegada. São pressupostos para metas permanentes do labor missionário.

Aparentemente, a globalização facilita a logística da atividade missionária. As viagens a outros países e continentes se tornaram bastante cômodas, comparadas com aquelas que levaram José de Anchieta ao Brasil e Francisco Xavier ao Japão, Os meios de comunicação forjaram uma humanidade conectada pela palavra e pela imagem, pelas mercadorias e pelos negócios. Mas globalização significa proximidade e distância, informa­ção instantânea e desinformação ideológica que natu­raliza o fosso social que separa ganhadores e perdedores do sistema económico em curso. A mídia e as redes sociais permitem o anúncio da Boa-Nova e a troca de experiências missionárias. Mas o poder da mídia é tam­bém um instrumento para divulgar meias verdades em defesa de interesses económicos. A mídia é também um instrumento ideológico de uma nova colonização. Mudam-se tecnologias de comunicação e de produção, mas os meios e relações de produção continuam atra­vessados pelo eixo do lucro, em função do qual, o mun­do produtivo fechou parceria com o mundo midiático e investe grande parte de sua criatividade em propaganda, persuasão, design, marketing. Tudo vale para transformar o próximo em cliente e as relações humanas em relações funcionais de mercado. Enquanto o mercado disfarça o preço, destaca o prazer imediato e apela ao desejo, a produção, através de aceleração, expansão e exportação, poupa tempo, intensifica a produtividade e diversifica os produtos.

Nesse contexto de informação instantânea e rela­ções furtivas, de produção acelerada e expansiva, lutamos não apenas pelo acesso de todos a objetos materiais necessários — lutamos igualmente pelo reconhecimento da diferença gerada por biografias, culturas, geografias e opções. A justiça distributiva formal que procura reco­nhecer e construir a igualdade de todos exige também a solidariedade com e o reconhecimento do outro diferente. Na esteira da pós-modemidade observa-se em diversos setores da sociedade uma dessolidarização angustiante. Ao “salve a sua alma” de ontem corresponde hoje um “salve o seu corpo”.

Na dialética de diferenças reconhecidas e de igual­dade conquistada afirmamos nossa filiação divina como bandeira contra qualquer tentativa de colonização cul­tural e exclusão social. Dialética é também a relação do tempo ganho pela produção acelerada e a falta de tempo pela multiplicação de tarefas. A falta de operários na messe, às vezes, sugere cumprir o labor missionário em correrias apostólicas. Precisamos aprender a priorizar nossos trabalhos e escolher campos significativos para a missão. Rejeitamos o papel do missionário Fórmula 1, com pit-stop cada vez mais curto nas comunidades. A única urgência que aceitamos é o sofrimento do pobre. Num projeto civilizatório desgovernado somos freio de emergência, presença gratuita e consciência crítica na contramão do sistema. As bandeiras do Reino de Deus sinalizam protestos contra as bandeiras do sistema que explora. Embora a tentação seja grande, não procuramos vencer a ambição do mercado por um mercado religioso. Vivemos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geo­grafia e Estatística (IBGE) de 2009, um momento de recuo estatístico lento, mas constante, dos católicos, que hoje ainda representam 68% da população brasileira. Os dados estatísticos questionam a qualidade da nossa pre­sença no meio do povo.

O que Deus quer nos dizer através desse decréscimo? Estão faltando ardor missionário, espiritualidade, em­penho social? Faltam estruturas adequadas para o mundo de hoje? Em todo o caso, algo falta, ou sobra. Em todos os nossos empreendimentos missionários devemo-nos perguntar se cabem no presépio e na cruz de Cristo. Fomos visitados e redimidos nos lugares mais insignifi- cativos do mundo. O seguimento de Jesus não nos pro­mete prosperidade. Redenção e libertação não estão sob a pressão de ritos mágicos ou sacrificiais. Fomos redimi­dos pela gratuidade da cruz. O Ressuscitado nos prome­teu a paz, e não melhorias graduais, prosperidade e progresso. Cruz e ressurreição visam à reorganização das relações humanas na lógica do dom, do perdão, da gra­tuidade e da justiça. Ressurreição é sinónimo de justiça definitiva, o fim da opressão e da humilhação; é emanci­pação como igualdade e reconhecimento; vida sem fardos desnecessários, de cabeça erguida e rosto descoberto, revelado, face a face.

Caminhar é a forma mais radical da partilha. Dessa caminhada compartilhada todos voltam transfigurados. Não só o Êxodo — a saída emancipatória sem retorno à terra escravizada —, também o Exílio obriga, através da experiência do estranho na terra estranha, a redefinir o próprio projeto, seus meios e fins; redefinir o conceito, o desejo e as imagens. A caminhada relativiza projetos, gramáticas e lógicas. Em cada etapa dessa caminhada voltam antigas e novas perguntas. São sinais da nossa subjetividade em construção e da busca de sentido. Só o sujeito faz perguntas, questiona a si e ao mundo. Afinal, quem somos? A caminhada missionária é um aprendi­zado para conviver em paz com cada vez mais perguntas. No caminho se perde a ansiedade de encontrar respostas para tudo. Ao sair do “nosso” lugar, mudamos o olhar ao mundo e a perspectiva de vida.

A Boa-Nova nos leva até os confins do mundo, que hoje são encontrados no meio de nós — entre os migran­tes, no pluriculturalismo da cidade e nas diferenças ideológicas —, exigindo presença lúcida e inculturação universal e, ao mesmo tempo, que sejamos sinal de con­tradição. Nós nos aproximamos dos outros e nos incul- turamos em suas culturas para podermos anunciar o Evangelho em seus códigos culturais. Mas o Evangelho que nos aproxima e nos lembra a pertença a uma irman­dade universal nos faz também críticos — sinal de con­tradição — em face das culturas dos outros, porque nenhuma cultura é perfeita. Não só a inculturação do Evangelho é um imperativo do seguimento de Jesus — a resistência aos poderes da morte que atravessam todas as culturas é igualmente um imperativo do seguimento do mestre (cf. Santo Domingo 13).

O discernimento entre proximidade acolhedora e distância crítica é uma exigência em face da própria cultura eclesial atravessada por estruturas de pecado. Também a Igreja e algumas de suas estruturas, que não favorecem a participação do povo de Deus, são destina- tárias da missão. Nessas estruturas históricas, às vezes blindadas contra qualquer crítica externa pela afirmação de sua origem divina, se encontram, necessariamente, elementos de trigo e de joio. Carregamos o tesouro do Evangelho em vasos de barro (cf. 2Co 4,7).

Para a sociedade civil dos nossos países e para o povo de Deus das nossas Igrejas, a transformação de estrutu­ras administrativas decisórias em estruturas participati­vas e transparentes seria uma boa-notícia. Segundo o Vaticano II, o povo de Deus não só participa do múnus profético de Cristo, mas também da infalibilidade no ato de fé, que é um bem incontestável da doutrina católica: “O conjunto dos fiéis, ungidos que são pela unção do Santo (cf. ljo 2,20 e 27), não pode enganar-se no ato de fé” (Lumen Gentium 12). Por conseguinte, quando se trata de decisões sobre estruturas e doutrinas da Igreja, os leigos e, sobretudo, os pobres, sendo parte constitu­tiva do povo de Deus, são sujeito eclesial e não podem

ser excluídos. O conjunto dos fiéis “manifesta esta sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o povo quando, ‘desde os bispos até os últimos fiéis leigos’, apresenta um consenso universal sobre questões de fé e costumes” (ibidem). A transformação de muitos textos conciliares em realidade pastoral exige uma conversão institucional e estrutural. O Vaticano II não é apenas um evento do passado. O Concílio exige um estado de conversão, hoje e amanhã. Não é essa uma das propostas de Aparecida que repetidas vezes propõe a criação de “novas estruturas pastorais” (DAp 173; 450) — urbi e orbi?

São Paulo, 1 de outubro de 2011
Festa de Santa Teresinha do Menino Jesus
Padroeira das Missões Católicas e Doutora da Igreja

SUESS, Paulo. Impulsos e intervenções. Atualidade da Missão. São Paulo/Brasília: Paulus/POM, 2011. 166 p.