Vocês são testemunhas destas coisas

de Stefano Raschietti, SX e Sidnei Marco Dornelas, C – 25/01/2011

“Assumimos o compromisso de uma grande missão em todo o Continente, que de nós exigirá aprofundar e enriquecer todas as razões e motivações que permitam converter cada cristão em discípulo missionário. Necessitamos desenvolver a dimensão missionária da vida de Cristo. A Igreja necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do Continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo. Esperamos um novo Pentecostes que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vinda do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança. Por isso é imperioso assegurar calorosos espaços de oração comunitária que alimentem o fogo de um ardor incontido e tornem possível um atraente testemunho de unidade ‘para que o mundo creia’ (Jo 17,21)” (DAp 362)

Um dos mais importantes legados da V Conferência Geral do Episcopado latino-americano em Aparecida foi assumir o compromisso de uma grande Missão Continental. Contudo, a recepção inicial desta proposta não foi a de realizar uma gigantesca mobilização eclesial, tampouco a de articular um projeto missionário em nível de toda igreja do Continente. Pelo contrário, o Documento do CELAM pós-Aparecida, “A Missão Continental para uma Igreja Missionária” (MC), como também o Documento da CNBB, “Projeto Nacional de Evangelização: o Brasil na Missão Continental”, conferem à Missão Continental um caráter de animação missionária das Igrejas particulares: “a missão que se realiza como fruto da Conferência de Aparecida deve, antes de tudo, animar a vocação missionária dos cristãos, fortalecer as raízes de sua fé e despertar a responsabilidade para que todas as comunidades cristãs ponham-se em estado de missão permanente” (MC 2).

Se existe uma novidade na perspectiva da Missão Continental, essa consiste num decisivo salto de passar de uma Igreja que promove alguns eventos “missionários” para arrebanhar fiéis, para uma Igreja em estado permanente de missão. Isso equivale a reconhecer o contexto de pluralismo no qual se encontra o mundo de hoje. Esse pluralismo se constitui na própria “casa” dos nossos povos na América e no mundo, onde temos que entrar tirando as sandálias, para anunciar permanentemente o Evangelho ali onde o povo se encontra.

É preciso, portanto, “percorrer juntos um itinerário de conversão que nos leve a ser discípulos missionários de Jesus Cristo” (MC 3), visto que para nos tornarmos tais, “impõe-se uma conversão radical da mentalidade” (RMi 49). Essa conversão consiste substancialmente num deslocamento e numa saída: “nós somos agora, na América Latina e no Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro para uma pesca abundante. Trata-se de sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parrésia), à missão de toda a Igreja” (DAp 363). Paradoxalmente, é nessa saída que a Igreja encontra sua razão de ser e sua própria identidade.

Para concretizar pedagogicamente esse intuito, o Documento do CELAM sobre a Missão Continental propõe “um plano mínimo para surtir efeito de visibilidade da comunhão” (MC, apresentação). Por sua vez o Documento da CNBB, além de sinais compartilhados e de gestos concretos, insiste na elaboração de subsídios, no processo de formação dos missionários e no aprofundamento de temáticas inerentes a questões propriamente missionárias.

Com esse propósito o Centro Cultural Missionário (CCM) e a Comissão Episcopal para a Missão Continental promoveram em Brasília, na sede do CCM, entre os dias 5 e 11 de setembro de 2010, a Semana Brasileira sobre a Missão Continental, com o objetivo de afunilar a reflexão em torno de três grandes temas do Documento de Aparecida: a espiritualidade missionária, dimensão essencial para a formação missionária; a paróquia missionária, exigência de conversão das nossas estruturas; os projetos para uma nova evangelização, caminhos para uma aproximação aos outros e para uma ação evangelizadora significativa em todo Brasil.

Esses temas revelaram-se questões fundamentais para a caminhada de nossas igrejas no Brasil. Para tanto foi proposta uma reflexão através de especialistas, um debate entre os participantes, oficinas de estudos e aprofundamento, para recolher iluminações, provocações, propostas, itinerários pedagógicos e gestos concretos. O objetivo seria que todo esse esforço e o material produzido pudessem subsidiar a ação missionária em nossas dioceses, paróquias e comunidades em todo Brasil.

A pauta da Semana contou também com o estudo de dois enfoques, desafios para a missão da Igreja: o mundo da juventude e as migrações no Continente. O primeiro diz respeito a uma prioridade da ação evangelizadora que a Igreja da América Latina assumiu desde Puebla, o compromisso com as novas gerações: “os jovens e adolescentes constituem a grande maioria da população da América Latina e do Caribe; representam enorme potencial para o presente e o futuro da Igreja e de nossos povos, como discípulos e missionários do Senhor Jesus” (DAp 443).

O segundo enfoque, sobre as migrações, diz respeito ao significado de “Continental” que damos a essa missão. O Continente está no meio de nós através de seus diversos povos que migram, particularmente, para os grandes centros urbanos. Qual é a ação de nossa Igreja junto a essas pessoas? E também, de que maneira a Missão Continental poderia tornar-se também uma ocasião para promover uma inter-ajuda entre igrejas latino-americanas em atender os diversos desafios que se apresentam junto a suas populações?

A Semana Brasileira sobre a Missão Continental foi organizada sob a égide do lema bíblico em que se expressa o mandato missionário no Evangelho de Lucas: “Vocês são testemunhas dessas coisas” (Lc 24,48). O Espírito que conduz a missão desperta um olhar contemplativo nos discípulos missionários. Eles são testemunhas das coisas que vêem. A testemunha não protagoniza a ação, ela não faz nada: apenas aponta o que Deus está fazendo. Deus com seu Espírito já está agindo no mundo, abrindo os corações, dispondo as pessoas a receber o anúncio do Evangelho. A Igreja é chamada a perceber essa ação divina através dos sinais dos tempos participando dessa mesma ação: saindo de seus currais, tornando-se hospede na casa dos outros. É um deslocamento fundamental que necessita de uma continua, progressiva, profunda e diligente conversão interior.

Esta publicação, que resultou da realização desse evento, busca disponibilizar para todos os cristãos motivados pelos ventos do Espírito que sopraram sobre a Igreja em Aparecida, e que se sensibilizaram com a proposta da Missão Continental, uma visão crítica e esperançosa sobre a evangelização no presente e futuro da América Latina. Deseja alargar para um público mais amplo a riqueza das contribuições que surgiram no decorrer da Semana Brasileira da Missão Continental. Reproduzimos as cinco exposições ali realizadas, com sua visão crítica sobre o conteúdo das proposições do Projeto da Missão Continental, cuja marca característica é a busca de uma continuidade com a caminhada pastoral da Igreja no Brasil. Com efeito, entre nós a Missão Continental se insere numa tradição recente de renovação eclesial, testemunhada por uma experiência de reflexão bíblica, de ensaios de inovação pastoral nos quadros das estruturas paroquiais, no acompanhamento dos movimentos de jovens, e principalmente numa trajetória de formulação de métodos ousados de planejamento pastoral. Toda essa riqueza de reflexão nos remete para o futuro, para onde a Missão Continental nos aponta, representada pelos desafios da missão inter-gentes. Os migrantes e todas as pessoas envolvidas pelo fenômeno da mobilidade humana são a feição mais visível dessa nova fronteira da evangelização.

Portanto, assim foram distribuídos os trabalhos ao longo deste volume: Pe. Sérgio Bradanini, PIME, desenvolve o tema dos Elementos Bíblicos da Espiritualidade Missionária: para uma formação missionária moldada pelo estudo e pela leitura orante da Sagrada Escritura; Pe. José Carlos Pereira, CP, apresenta aquele da Paróquia Missionária: um Projeto Possível?: mudanças estruturais rumo a um novo padrão pastoral; Pe Manoel Godoy expõe longamente sobre Projetos e Métodos para uma Nova Evangelização: memória, seguimento e perspectivas; Pe. Jorge Boran, CSSp, desenvolve o tema da Missão junto à juventude para uma juventude protagonista da missão; Pe. Sidnei Marco Dornelas, CS, encerra com A Dimensão Continental no Meio de Nós: para uma missão inter-gentes na América Latina e Caribe junto aos migrantes.

Devemos agradecer a participação ativa dos Bispos da Comissão Especial da CNBB para a Missão Continental, bem como a confiança que nos foi depositada para a realização deste encontro: Dom Sérgio Arthur Braschi, Dom Pedro Brito Guimarães, Dom Adriano Ciocca Vasino, Dom Jaime Pedro Kohl, PSDP, Dom José Lanza Neto. Agradecemos a participação alegre e comprometida daqueles que freqüentaram essa semana de estudo e debates, em especial a colaboração preciosa de Pe. Mário de Carli e Maria Salete dos Santos (Diocese de Santos), relatores do evento e responsáveis pela composição do relatório final. Agradecemos também todos os colaboradores e funcionários do CCM pela logística, acolhimento e infraestrutura. Enfim, todos os trabalhos da Comissão para a Missão Continental, no qual se inclui a iniciativa da Semana Brasileira sobre a Missão Continental, não poderiam se realizar se não contassem com o entusiasmo e a dedicação dos padres Ademar Agostinho Sauthier, Subsecretário Adjunto de Pastoral da CNBB, e José Altevir da Silva, CSSp, Assessor da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Missionária e Cooperação Eclesial, nossos companheiros na assessoria a essa comissão e na realização desse evento.
É nosso desejo que este livro possa não só atingir um público mais amplo ao expor a riqueza das reflexões desenvolvidas durante essa Semana, mas também instigar a um compromisso mais ativo e uma consciência mais alerta sobre os desafios que a Missão Continental, herança de Aparecida, apresenta para os cristãos de nosso continente. Através dela, o Espírito ainda nos impele para avançar em direção de “águas mais profundas”.

CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Missão continental – Vocês são testemunhas dessas coisas. Brasília: Edições CNBB, 2011, 200 p.