Diálogo profético

de Stephen Bevans e Roger Schroeder – 04/01/2016

“Diálogo profético” é uma categoria de síntese sobre complexidade da missão hoje. Esta expressão surgiu da reflexão missiológica na Congregação dos Missionários do Verbo Divino, durante o XV Capítulo Geral no ano 2000 em Roma. Nesta congregação, a maior especificamente missionária ad gentes da Igreja católica, os missionários que atuavam em países asiáticos sustentavam que a missão é antes de tudo diálogo, enquanto, para os missionários da América Latina, a missão é profecia contra as estruturas de opressão que geram pobreza.

A atitude de abertura e respeito para as culturas de outros povos parece ter surgido já na fundação da congregação, pois considerada como herança do fundador e reelaborada no Capitulo Geral de 2000 afirmando: “… a verdadeira evangelização implica não a imposição da mensagem do Evangelho, mas sua redescoberta de dentro das culturas dos povos …, pelo qual a mensagem do evangelho não é simplesmente de ‘pára-quedada’ do exterior, mas entra em diálogo … por meio de que o missionário está pronto para não mudar só as pessoas, mas também mudar a si mesmo …” (Pernia, Verbum 45,1 – 2004, 34). Assim a compreensão da missão foi denominada como “Diálogo profético” acompanhando os apelos dos tempos atuais.

O consenso criativo ao qual se chegou foi por meio da junção destas duas tensões: a missão como “diálogo”, que expressa o reconhecimento das diversas culturas e a necessidade da reciprocidade na missão cristã, deve ser integrada pela dimensão profética que fala abertamente e anuncia o Evangelho como caminho de conversão.

Essa intuição levou os missiólogos Stephen Bevans e Roger Schroeder, verbitas, professores da Catholic Theological Union de Chicago (EUA) a publicar “Constants in context. A Theology of Mission for Today” (“Constantes em contexto. Uma teologia para a missão hoje”, 2004).

Praticamente desconhecida no Brasil, essa obra teológica se tornou uma das mais relevantes e entre as três maiores das últimas décadas no âmbito da missão, junto à de David J. Bosch, “Missão transformadora, Mudança de paradigma na Teologia da Missão” (São Leopoldo: Sinodal, 2002).

Como prosseguimento da reflexão, Bevans e Schroeder produziram esse livro “Diálogo profético” aprofundando conceitos e desdobramentos que foram abordados só no último capítulo do trabalho anterior. “É similar – explicam os autores – ao que o grande David Bosch descreveu como ‘humilde ousadia’, a atitude que distingue os cristãos na pratica da missão: uma ousadia na proclamação que é temperada com profunda humildade a respeito dos danos que a missão tem provocado, e um profundo respeito ao Deus que estava lá antes da chegada do missionário”.

Mesmo faltando ao leitor brasileiro o elo com Constantes em contexto, o livro que aqui apresentamos traz elementos, metáforas, narrativas instigantes para contribuir decididamente com a caminhada missionária da Igreja no Brasil. Queremos aqui evidenciar alguns aspectos que são para nós particularmente significativos.

Em primeiro lugar, a reflexão missiológica de Bevans e Schroeder tem como pano de fundo a “experiência mãe” da missão e da própria Igreja: a missão ad gentes aos povos não-cristãos. Os nossos autores nos lembram que a missão transcultural é tão vital que a ela se deve o próprio nascimento da Igreja.

João Paulo II, em sua encíclica missionária Redemptoris Missio afirmava que “sem a missão ad gentes, a própria dimensão missionária da Igreja ficaria privada de seu significado fundamental e de seu exemplo de atuação”, e por isso “é preciso evitar que (…) se torne uma realidade diluída na missão global de todo povo de Deus, ficando, desse modo, descurada ou esquecida” (RMi 34).

Graças ao Vaticano II, a missão tornou-se paradigma estruturante de todo o ser o agir eclesial no mundo de hoje. A recepção desta profunda renovação, porém, não foi isenta de equívocos pastorais e de interpretações distorcidas: de repente, a missão não era mais projetada além-fronteiras, mas começava e terminava aqui, apenas dentro dos perímetros dos diversos contextos sócio-culturais, fechando as comunidades em si mesmas, achando que todos os batizados de agora em diante eram missionários só pelo fato de serem batizados. Nenhum chamado, nenhum apelo, nenhum compromisso tornava-se tão significativo quanto o engajamento exclusivo com a própria realidade eclesial.

Com essa visão restrita e essa postura, não apenas a solidariedade intereclesial sofreu um golpe, particularmente aqui na América Latina, mas a própria conversão missionária da Igreja foi e está sendo tremendamente prejudicada. O Concílio com o Decreto Ad Gentes alertava: “a graça da renovação não alcançará as comunidades se não estenderem o seu amor até os confins da terra e se preocuparem com os que estão longe como se fossem seus próprios membros” (AG 37).

À atitude anti-evangélica de fechamentos dos horizontes humanos e eclesiais, correspondia também certa fragmentação entre os elementos que constituíam uma sadia teologia da missão. Segundo algumas sínteses parciais, os tempos atuais apontavam para uma missão de diálogo e não de anúncio; de libertação e não de salvação; na perspectiva do Reino e não na fundação de igrejas; inter-gentes e não mais ad gentes; ad intra e não mais ad extra; de respeito da alteridade e não de conversão; de reciprocidade, no reconhecimento da livre ação do Espírito, e não de iniciação cristã; etc.

Por outro lado, expressões de fundamentalismo doutrinário defendiam posições opostas de integrismo e exclusivismo a respeito da missão aos povos, à esteira do axioma “fora da Igreja não há salvação”. A missão que se gerava a partir de determinadas posturas, era marcada por certa agressividade e ingenuidade, por uma visão maniqueísta entre “nós” e os “outros” e por um conceito de Igreja fixado na imagem da arca de salvação. O objetivo ideal e nostálgico de restaurar um regime de cristandade animou movimentos de ordem conservadora para uma nova evangelização, particularmente em contextos tradicionalmente cristãos durante os últimos pontificados: essa empreitada, porém, não deu de maneira alguma os resultados esperados.

Em tempos bastante tensos, conflitivos, ambivalentes, caracterizados por profundas mudanças na Igreja e no mundo, o problema de fundo da missão parecia se complicar ainda mais: como conciliar a proclamação de um único e verdadeiro Deus e a adoção de meios específicos para a salvação, diante de um mundo secularizado e pluricultural que nos desafia a esse respeito? Os cenários da atualidade nos provocam repensar radicalmente a missão com uma apropriada reflexão teológica, um caminho de conversão da Igreja, uma clareza de horizontes e um ousado testemunho.

A obra de Bevans e Schroeder encara estes desafios e propõe pistas para uma teologia da missão hoje orgânica, criativa, sistemática, que coloca os diferentes aspectos em relação sem pretender dizer uma última palavra, mas apresentando um quadro global significativo para a caminhada de nossas igrejas hoje.

O tema da missão aos povos não é algo marginal para a reflexão teológica e para a ação eclesial: em torno desta dimensão essencial se joga o futuro do cristianismo chamado a redescobrir sua identidade na saída missionária além de todas as fronteiras (cf. EG 27). Essa saída representa um renascer, um êxodo pascal de morte e ressurreição, uma dinâmica fundamental do encontro da comunidade discipular consigo mesma no seu Senhor: “a intimidade da Igreja com Jesus é uma intimidade itinerante, e a comunhão ‘reveste essencialmente a forma de comunhão missionária’ (ChL 32). Fiel ao modelo do Mestre, é vital que hoje a Igreja saia para anunciar o Evangelho a todos, em todos os lugares, em todas as ocasiões, sem demora, sem repugnâncias e sem medo” (EG 23).

O Brasil apesar de possuir uma matriz religiosa predominantemente cristã, observamos certas lacunas no campo de missiologia e como atuar na missão. As fronteiras missionarias são variadas, mas pistas para aproximar essas fronteiras são poucas. Desejamos que a leitura e o estudo deste livro “Diálogo profético” possam ajudar a abrir veredas de novas práticas, novos testemunhos, novas ousadias da América Latina até os confins do mundo, e que o Espírito Santo; “venha renovar, sacudir, impelir a Igreja numa decidida saída para fora de si mesma a fim de evangelizar todos os povos” (EG 261).

Pe. Estêvão Raschietti, sx
Pe. Joachim Andrande, svd

Centro Cultural Missionário
Brasília, 20 de novembro de 2015

BEVANS, Stephen B.; SCHOEDER, Roger P. Diálogo Profético. Reflexão sobre a Missão cristã hoje. São Paulo: Paulinas, 2016. 230 p.